Do Dicionário de Citações

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O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Sobre Livros - Artífices do Livro nos Países Baixos Meridionais


A TRADIÇÃO LIVREIRA NOS PAÍSES BAIXOS MERIDIONAIS

Os Países Baixos Meridionais constituem um verdadeiro mosaico de territórios anexados, no decurso de três gerações, pelos duques de Borgonha da casa dos Valois. Processo que se iniciou durante o reinado de Filipe II, o Audaz (v.1363-1404), sucedido pelos filhos João Sem Medo (r. 1404-1419), Filipe III, o Bom (r. 1419-1467) e pelo neto Carlos, o Temerário (r. 1467-1477), herdeiro de um “estado bourguignon” já consolidado.



Cartografia dos Países Baixos Meridionais (século XV).
FONTE: Miniatures Flamandes (1404-1482). Sous la direction de Bernard Bousmanne et Thierry Delcourt. Paris: Bibliothèque nationale de France; Bruxelles: Bibliothèque royale de Belgique, 2011.


A tessitura de um “território” por assim dizer tão extenso quanto diversificado impôs aos historiadores do livro, em particular àqueles dedicados aos códices manuscritos, algumas dificuldades. Pensemos, por exemplo, na acepção mesma de uma “arte do livro flamengo”, ou de uma “miniatura flamenga”, quando se sabe que a unidade do conjunto se constrói a partir da diversidade de estilos, noutros termos, a partir das diretrizes de produção e gostos já cristalizados no âmbito de uma tradição local.
Seguindo a lógica da unidade na diversidade, é possível apreender ao menos duas tendências artísticas, senão, duas escolas: o chamado estilo Rinceaux d’or [Folhagens de ouro], que remonta à tradição dos primeiros artistas; e um estilo renovador, sob influência de Rogier Van der Weiden (1400-1464), artista ligado ao senhorio de Bruxelas, e de Jan Van Eyck (1390-1441), que atuou em Bruges, este primeiro grande centro produtor de manuscritos ilustrados. Uma presença tão marcante que se convencionou classificar as ilustrações flamengas em dois grandes seguimentos: um anterior e outro pós-Van Eyck. É o que revelam os códices depositados nas grandes bibliotecas da região, em particular, a coleção dos Duques de Borgonha, cujo acervo se encontra na Biblioteca Real da Bélgica. Uma cartografia dos principais centros produtores e consumidores de códices manuscritos perfaz, em grande medida, os mesmos circuitos de produção e consumo de artigos de luxo, os quais notabilizaram as cidades dos Países Baixos. Ela revela, ainda, a existência de canais de comunicação entre diversos centros produtores, havendo, não raro, uma verdadeira divisão de trabalho na feitura de um só códice. É o caso das Chroniques de Hainaut, livro ricamente confeccionado em apenas dois anos, de 1446 a 1448, sob os auspícios de Filipe, o Bom. Envolvem-se nesse processo não apenas o mecenas, mas a figura do editor, que coordena a tradução e revisão do texto; em seguida, a do copista; e, finalmente, a do ilustrador; para não contar a do pergaminheiro, este, certamente, escolhido a dedo, dentro de uma tradição severamente resguardada por seus mestres.
Filipe, o Bom recebe diante do Conselho o livro Chroniques de Hainaut, das mãos de Simon Nockart 
Sobre a mobilidade dos profissionais, observa Vanwijnsberghe no estudo sobre as miniaturas flamengas do século XV:
Nada impedia que um aprendiz efetivasse sua formação com um mestre “estrangeiro”, com a condição de que esta aprendizagem fosse valorizada em alguma outra cidade. Naquelas localidades onde as listas de aprendizes foram conservadas, como em Tournai, estes casos são muito frequentes. Pode-se, assim, supor de origem flamenga um certo Pierre de Hulst, aprendiz de Mille Marmion, que tem acesso à formação em 1477, em seguida, que um certo Pieter Van Hulst, filho de Lauwereyn, torna-se mestre em Gand, em 1480: poder-se-ia tratar do mesmo homem. Marthe de Hulst, muito provavelmente uma parente de Pierre, teria o mesmo pedigree. Ela se forma como iluminadora profissional com Martin Herman, nascido em Antuérpia, mas que se instalou em Tournai. Uma Flemish connection – conclui o autor – se desenha nesta boa cidade da França que era Tournai.
Uma lista dos membros da Confraria de São João Evangelista, de Bruges, datada de 1454, não deixa dúvidas quanto a importância dos profissionais do livro ali inscritos e, de modo particular, dos miniaturistas. Estudos semelhantes identificaram profissionais que atuam, via de regra sob o mesmo sistema de mecenato, nas cidades de Gand, Audernade, Tournai e Valencienne (seguindo a linha do rio Escaut, ou Schelde). Os exemplos se multiplicariam, ainda, se considerássemos os artistas de Bruxelas, como um certo Jean Hannecart, camareiro de Carlos, o Temerário, mas que não se furta a manter contato com seus confrades para além dos limites dos muros do palácio ducal. A Antuérpia se mantém terra incognita, embora apresente alguns exemplares no mínimo intrigantes, como este assinado por um monge do convento cisterciense.
A Virgem com seu Filho adorada por um monge cisterciense (c.1479)    
Ora, escusado dizer – mas o digo mesmo assim – da atração que estas cidades exerceriam sobre os primeiros tipógrafos. Disponibilidade de mão-de-obra especializada e presença de ateliês bem instalados e providos de matéria-prima de boa qualidade, entre pergaminhos e papeis nobres, tintas, folhas de ouro, aos quais se somavam os muitos utensílios usados na encadernação, escrita e pintura, eis, em poucas palavras, os fatores que elevaram a produção do livro nas cidades dos Países Baixos a um alto padrão artístico.
Não nos espanta, portanto, a rapidez com que as oficinas tipográficas se instalaram em toda a região, a partir de 1470-80. E o fato da Antuérpia, esta capital vibrante do “século de ouro dos Fuggers” não ter demorado a se tornar seu principal centro produtor de livros.



2 comentários:

  1. Estou estudando o retrato em Portugal seculos XV e XVI e gostei de encontrar o seu artigo!
    parabéns

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  2. Muito obrigada!
    No momento, estou totalmente voltada para as bibliotecas do Leste!
    Espero poder ajudar mais em outras oportunidades. Quando quiser divulgar encontros e pesquisas de temas afins, é só enviar o programa.

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