Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Mudando de assunto...

MARIANNE ACORRENTADA

A editora de Bibliomania pede licença para mudar de assunto. Ela deve fugir do mundo dos livros para adentrar no mundo "real" - ou seria um pesadelo? Nestas linhas, o desabafo de uma mulher, mãe, professora, escritora e leitora pela LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE.

EM REPORTAGEM histórica sobre a queda da ditadura franquista, Clóvis Rossi observou que nos cinemas da Gran Vía, a principal avenida de Madrid, os cartazes de mulheres nuas aumentavam na medida em que relaxava a censura imposta pelo Estado. A imagem diz muito sobre o moralismo hipócrita sustentado pelos regimes totalitários, mas também sobre a situação de indigência política a que foi relegada a mulher nos anos subsequentes à abertura política.

Diferente do que ocorrera nas revoluções de 1968, quando as mulheres tomaram as ruas de Paris, queimaram os sutiãs, ostentaram minissaias e fizeram de seus corpos e da sexualidade uma expressão político-libertadora, fato que reverberou nos movimentos de contracultura por todo o ocidente, havia algo de obsceno na superexposição do corpo da mulher no avançar dos anos 80. Projetaram-se tantos holofotes sobre a nudez feminina, que seu corpo se desmaterializou. O nu se tornou uma mercadoria. Um grande negócio que alimenta a indústria midiática até a atualidade.

A invisibilidade da mulher teve desdobramentos perversos no âmbito das relações cotidianas e de sua representação na esfera pública. Em pesquisa divulgada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, relativo a 2014, constatou-se que 90,2% das mulheres brasileiras temem ser agredidas sexualmente. Dado curioso, 67,1% dos homens alegam viver sob a mesma onda de medo! Registraram-se 47.646 estupros no mesmo ano. Estima-se que estas cifras correspondam a apenas 10% das ocorrências. A essa anomalia social é preciso somar os casos de violência doméstica e, outro, não menos preocupante, que diz respeito às mulheres vitimadas pela prática de intervenções cirúrgicas, com fins estéticos, realizadas por profissionais de índole e de formação duvidosas e em condições hospitalares subumanas.

É evidente que as violências praticadas contra a mulher não têm relação direta com a mercantilização de sua imagem, o que seria tomar a parte pelo todo. Ou seja, reduzir a um problema de exposição midiática toda uma cultura machista já bem cristalizada. Todavia, deve-se ponderar que as estatísticas frequentemente estampadas nos jornais confirmam o grau de fragilidade da mulher muito mais por suas lacunas, do que pelas cifras que apresentam. É que para além da quantificação dos crimes, existe a vontade política de denunciá-los e, claro, de extingui-los. No Brasil, a lei no 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tornou-se um marco na luta contra a violência feminina. A lei teve consequências profundas, na medida em que a violência doméstica deixou de ser tratada como caso de polícia, para ser enfrentada como um problema do Estado brasileiro, o que conduziu ao acionamento de uma série de dispositivos legais, políticos e assistenciais contra o “feminicídio”.

Dilma Roussef é ex-guerrilheira e presa política que conheceu de perto a truculência da polícia. Sua presença faz coro com outras ativistas que renasceram como fênix no movimento pela redemocratização do país e que atuam, fortes e altaneiras, em diferentes setores sociais.
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A REINVENÇÃO DE MARIANNE, símbolo máximo dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, apresenta-se hoje de forma organizada e comprometida com os problemas nacionais. É claro que a pauta feminina não desapareceu. Pelo contrário, debate-se hoje abertamente a questão do abuso sexual, da violência doméstica, do direito ao aborto, da equiparação dos salários e das cotas de participação das mulheres no mercado de trabalho e na política (leia-se, no Legislativo). Existe, todavia, a compreensão de que esses problemas não são isolados. De que, na verdade, é impossível superá-los, com justeza, sem o enfrentamento direto de questões estruturais, a saber, o conflito interclassista e o preconceito racial. As manifestações de mulheres organizadas contra os abusos de poder e em nome da apuração dos escândalos que assolam a imagem do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, demonstram, com eloquência, sua presença forte na arena política.

E a vitória não é numérica. É histórica. Não nos surpreende, portanto, que todas essas conquistas sejam tão recentes. A própria figura de uma presidente que destoa por seu passado político, se comparada, por exemplo, a Cristina Kirchner e Angela Merkel, reforça esta ideia.

Outrossim, a presença da mulher na política – nas ruas, nos palanques e nas tribunas – aponta para a convergência de conteúdos e de interesses da humanidade como um todo. Pois se trata de um movimento internacional, com destaque para algumas vozes que ousaram desafiar até mesmo a gana devastadora dos califas no mundo islâmico. Nesse sentido, como não se mirar no exemplo de Malala, essa jovem que aprendeu muito cedo que a transformação se faz pela educação e pela força? A presença da mulher na política olha para o futuro, derruba tabus do presente e não esquece as figuras do passado. Ela honra aquelas guerreiras que sob a divisa “Abaixo a fome! Pão para os trabalhadores!”, enfrentaram a fúria das tropas czaristas na Rússia de 1917. Das mulheres operárias que deram a vida na luta por relações dignas e justas no mundo do trabalho. A mulher de hoje é Betty Friedan, é Frida Kahlo, é Simone de Beauvoir, é Carolina Maria de Jesus, é Madre Teresa de Calcutá, é Guiomar Silva Lopes... Ela é a própria Utopia. Ela representa aquelas mulheres que queimaram os sutiãs, mas que não se iludiram com a supervalorização de sua nudez nos grandes cartazes de cinema. É também a dona de casa na lida diária. Ela é a presença anônima e bela que recusa rótulos e piadas de mal gosto.

Como a grande Marianne que caminha de peito aberto desfraldando sua bandeira, a mulher brasileira em uníssono desfralda seu grito libertador. Ela é Pagu e, com ela, pode gritar: "Tenho várias cicatrizes, mas estou viva. Abram a janela. Desabotoem minha blusa. Eu quero respirar".