Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

DiverCidades

Em Noyon, pausa para uma visita ao Museu Calvino


A casa de meu pai continua sozinha, de pé, após ter sido a cidade reduzida a cinzas, Calvino, 1553.
A morada de Jean Calvin (1509-1564) se situa no centro da cidade de Noyon, a alguns passos da grande catedral. Católico de origem, seu pai desempenhava um papel importante entre o clero e, mesmo, naquela pequena e nobre cidade. O jovem Calvino foi enviado para Paris, para os estudos de Teologia, o que na época era a expressão máxima da formação superior. Porém, por desavenças de seu pai com membros da Igreja de Noyon, o filho foi transferido para a Faculdade de Direito de Orléans, onde concluiu seus estudos. Mas não sua brilhante carreira intelectual.
A adesão à nova doutrina reformada, ao luteranismo, aconteceria no inverno de 1532-1533. A partir desse momento nosso autor não cessa de apresentar todo o seu arrazoado contra os dogmas do catolicismo, donde os escritos contrários à comunhão, à venda de indulgências e assim por diante. Ao lado de Lutero, cuja formação em Teologia acaba por desenhar características intelectuais diversas de seu coetâneo, Calvino legou para a comunidade protestante francesa e europeia uma obra que não deixa dúvidas sobre a qualidade literária e sobre o fato de estarmos diante de um dos mais expressivos teóricos da igreja reformada.
Na casa de Calvino a história da Reforma é contada em cada cômodo que conforma três andares da construção, sóbria e compacta. Ali imagens e objetos são dispostos cronologicamente a fim de inteirar o público sobre os destinos e as guerras empreendidas durante praticamente os dois últimos terços do século XVI. A história da formação do Estado francês está intimamente relacionada às guerras religiosas, cujo pacto celebrado com Henrique de Navarra, futuro Henrique IV, coroado em 27 de fevereiro de 1594, constitui uma primeira e grandiosa expressão de aliança e de paz entre católicos e protestantes.
A sala dedicada ao “Deserto” é particularmente fascinante. A expressão demarca o período de fuga da comunidade protestante, em 1685, após o edito de Fontainebleau e se estende até 1787, quando da publicação do chamado edito de Tolerância. A expressão “Deserto” para caracterizar esse longo período de exílio tem suas origens bíblicas, mas diz menos da caminhada de um povo do que da busca de um espaço reservado para a realização do ofício. Assim, livros e mobiliários dessa fase eram feitos com o propósito de facilitar a mobilidade e a possível fuga dos fieis. Uma cadeira do “Deserto” está exposta no museu Calvino.
O edifício não é original, pois sua casa foi destruída durante os cataclismos que devastaram toda a cidade entre 1914-1918.
Atualmente, a instituição é administrada pela cidade, com o apoio da Société d’Histoire du Protestantisme Français (SHPF), sediada em Paris, na rue des Saints-Pères, onde, aliás, repousa uma riquíssima biblioteca.

http://www.museeprotestant.org/notice/musee-jean-calvin/

sábado, 4 de fevereiro de 2017

DiverCidades

DESCOBRIR NOYON (e a Picardia)



Situada na região francesa da Picardia, a cidade de Noyon se apresenta como uma importante ligação de rotas terrestres, que se conectam ao Norte, com a Bélgica, a Oeste, com Amiens e ao Sul, com Paris. Ela dista 106 km da capital francesa e o acesso se faz diretamente de trem, em uma hora, a partir da Gare du Nord.
Nessa pequena cidade de 13 mil habitantes, algumas joias são dignas de nota.
No núcleo antigo, rodeada por um belo casario originalmente destinado aos prelados, cuja arquitetura remonta aos séculos xvii e xviii, ergue-se uma belíssima catedral. Trata-se de um exemplar da arte gótica dos primeiros tempos, com alguns resquícios românicos, é verdade, se considerarmos a ornamentação de uma de suas torres.
A catedral de Noyon foi erguida a partir de 1145, sobre o terreno da igreja antiga consumida pelo fogo, em 1131. Carlos Magno fora ali coroado rei dos francos, em 768;  em 987, seria a vez da consagração de Hugo Capeto. Desde então, constituiu-se no centro de Noyon um bispado forte, formado por alguns pares de França, ou seja, a distinção máxima dentro da ordem eclesiástica, com exceção do Papa. Tal fato justifica os esforços e os gastos dispensados para a execução da catedral, cujo conjunto arquitetônico se notabiliza, ainda, pela sala do capítulo e o claustro.
Mas o que realmente chama a atenção dos viajantes é a biblioteca do capítulo, erguida no terreno contíguo à catedral, em 1501. Trata-se de um pavimento em madeira sobre base de pedra, com um pátio livre no rés-de-chão. Uma construção sem dúvida singular, como o leitor há de convir ao ver a fotografia ao lado.  
Na época da Revolução de 1789 a biblioteca contabilizava cerca de 5 mil volumes. As guerras revolucionárias, que atingiram em cheio aquele conjunto eclesiástico, ao ponto de Noyon se submeter, a partir de 1802, à diocese de Bouvines, foram apagando o brilho da cidade. Deve-se ainda lembrar que as Guerras de 1914 e 1939 tiveram um efeito desastroso para a população. Nas duas grandes guerras a cidade foi tomada pelas tropas alemães, vindo a sofrer com as pilhagens, os incêndios e as destruições que marcaram profundamente sua história.
Ao final dos cataclismos, venceram os livros.
Hoje a biblioteca do capítulo é motivo de orgulho dos cidadãos de Noyon. Na prefeitura da cidade, uma verdadeira joia é guardada a sete chaves. Referimo-nos ao precioso Évangéliaire de Morienval (247 x 192 mm), com encadernação original e praticamente intacta. Nas palavras do estudioso André Masson, trata-se de “um dos mais célebres manuscritos da época carolíngia”.

A viagem não para por aí, pois um capítulo dedicado à Reforma e às guerras de religião da França, no século xvi, será contato na casa de Calvino, este ilustre cidadão de Noyon, nascido em 10 de julho de 1509. Mas sobre esse assunto falaremos num próximo artigo.